terça-feira, 22 de janeiro de 2013

Curta sobre Frei Tito

Curta-metragem e projeto de longa reconstituem saga de Frei Tio de Alencar nos cinemas
A tortura não deixa marcas apenas no corpo. Ela produz cicatrizes também na alma, que podem se transformar em feridas que jamais cicatrizam.

A metáfora é usada pelo cineasta Augusto César Mota Albuquerque, que, em 2008, começou a gravar o curta “SP 70”, filme que tem como foco principal de suas lentes, a carta escrita pelo frei dominicano cearense Tito de Alencar Lima (1945-1974) relatando, com riqueza de detalhes, as sessões de torturas física e psicológica as quais foi submetido, durante 30 dias de prisão, na cela da Operação Bandeirantes (Oban), no presídio paulista Tiradentes, em dezembro de 1969.

O filme tem apenas 17 minutos de duração, mas, ao todo, são cerca de sete horas de material gravado

“Pesquisei muito sobre a vida dele e queria abordar não apenas o lado político, mas, sobretudo, o religioso e os delírios sofridos”, explica o cineasta que assina a direção e o roteiro do filme.

Ele adianta que possui sete horas de material gravado, suficiente para se aventurar no projeto de um longa – aliás, este já possui um esboço bem adiantado. O longa seria acrescido de outros países visitados pelo frei dominicano, que virou símbolo da luta contra o regime de exceção no Brasil, citando a França, onde morreu, e o Chile, pontua. Todo o texto que aparece no filme é de autoria de Frei Tito, que suicidou-se na França, em 1974, aos 28 anos, vítima da repressão sofrida. Ele não suportou conviver com as feridas na sua alma, que viraram delírios, na visão do cineasta. O filme mergulha no aspecto subjetivo da trajetória do frei dominicano, cuja vida já foi contada em diversos livros, peças de teatro, ganhou biografia e, agora, vira curta, com promessa de chegar (de novo) à telona.

No início, a obra foi batizada de “Paixão de Tito”. Agora, o filme, que acaba de ser finalizado, tendo sido montado no ano passado, prepara-se para ganhar o mundo. O destino são os festivais de cinema, em especial os franceses. A opção pelo nome “SP 70”, justifica ser um código, tão comum na época da ditadura militar, além de ser também uma metáfora. Com 17 minutos de duração, avisa que é uma obra de ficção, na qual o diretor recorre à poesia e a metáforas para falar sobre os efeitos do regime militar no País. Discorre sobre conceito de alienação, participação política e, sobretudo, os efeitos nefastos dessa morte com a qual o torturado passa a conviver, como ocorreu com o padre dominicano cearense. É justamente com esse aspecto subjetivo da vida de Frei Tito de Alencar que o cineasta usa para trabalhar de maneira quase artesanal a sua obra. “O curta está pronto”, festeja o cineasta, que conta a proeza de conseguir realizar um filme no estilo de “mutirão”, como ele próprio define, afirmando ter feito um caminho diferente. Não contou com apoio financeiro de editais de arte, completando que “a ideia era fazer um filme sem recursos”. O único texto que aparece no filme, que não faz parte da carta de Frei Tito, é o diálogo entre um homem e um a mulher, encontro que acontece na França.

“O cenário é da época e o diálogo se dá entre um brasileiro e um francês”. Por ser escrita em português, a francesa não consegue entender o que está escrito (trecho da carta de Frei Tito). “Faço alusão a essa diversidade de brasileiros espalhados pelo mundo, ressalta o diretor, que também trabalha com o conceito de alienação. “Na época, muita gente não tinha compreensão do que se passava”, diz.

O cineasta chama a atenção para o texto escrito pelo frei dominicano, cuja perseguição política começa em 1968, ao participar do Congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE), em Ibiúna, interior de São Paulo, ganhando prêmio internacional. “Escrito na prisão, o texto conta com detalhes a tortura sofrida, provocando-lhe distúrbios mentais”, relata, acrescentando que o filme enfoca os delírios sofridos pelo religioso. “Ele foi submetido a tratamento psiquiátrico na França”. Pela delicadeza do assunto, Augusto Albuquerque optou por usar uma linguagem poética, marcada por metáforas. A começar pela própria estruturação do filme. “Nossos personagens são os leitores da carta”, diz, completando que o filme trabalha com o conceito de alienação, daí fugir das músicas de cantores e compositores considerados engajados politicamente. “As músicas não são politicas”.

“Ele não é um filme linear e nem tem uma linha cronológica. A gente trabalha com o inconsciente, os delírios de Frei Tito”, reitera o diretor. Como toda obra reflete um pouco sobre a história de vida do autor, não é diferente com o cineasta, cuja trajetória inclui militância política e dois anos de estudos em Teologia, entre 2001 e 2002, em Fortaleza, além de ter estudado em colégio de padres jesuítas. “Tinha vontade de fazer um trabalho sobre a ditadura militar e quando li o texto de Frei Tito chorei muito”, conta, afirmando ser impressionante a consciência do religioso. Explica que não defendia a luta armada, mas o regime pensava. A defesa de Frei Tito era pela democracia e tinha como base os ideias cristãos. Aliás, uma metáfora no filme remete a essa concepção cristã de que é necessário voltar a ser criança para conseguir o paraíso, no sentido de pureza. E era isso que defendia Frei Tito, que volta a ser criança na obra, mas no sentido teológico. Pode ser a chegada à vida eterna, o retorno a sua terra natal, uma lembrança da infância, arbitra o cineasta, explicando que cabe a cada um a leitura da cena.

No curta, o padre dominicano é interpretado pelo ator Levi Mota, que trabalha com mais outros 15 artistas, incluindo o veterano ator cearense, Ary Sherlock, além de João Falcão e Cristine Góis, entre outros. Apesar de ter 17 minutos, não se trata de documentário, explica o cineasta, que diz não trabalhar com roteiro “amarrado”.
No filme, reúne atores e não-atores, além de apostar na improvisação, como o texto da carta, que os artistas recebiam na momento da gravação. Sobre o encaminhamento do projeto, responde que “a gente ainda não decidiu como vai fazer, mas certamente, sem comercialização”, diz, esclarecendo que o contrato já prevê isso. “Vamos percorrer os festivais franceses, daí manter o ineditismo por enquanto”.

Cartas reunidas em novo livro
Frei Tito de Alencar morreu, na França, durante a Ditadura Militar: várias cartas foram escritas depois disso
Cerca de 30 cartas escritas após a morte de Frei Tito foram reunidas pelo historiador Régis Lopes no livro “Cartas de Com-paixão”, que ele lança, hoje, a partir das 17 horas, no Museu da Arte da Universidade Federal do Ceará (Mauc/UFC). A publicação é o quarto volume da coleção “Ao portador”, dedicada apenas a cartas de personalidades. O número anterior trouxe missivas de Capistrano de Abreu. O projeto é do Instituto Frei Tito.

De acordo com Régis Lopes, o material selecionado para o livro é composto em sua maioria por acervo que estava em poder da família de Frei Tito. “Não houve qualquer empecilho para que eu tivesse acesso a elas. Era de interesse dos familiares tornar esse material público”, conta.

A ideia, de acordo com Régis, não é falar de Frei Tito, contar a sua trajetória, mas retratar as memórias que ficaram após a sua morte. “Muitos morreram durante a ditadura, mas Frei Tito virou um símbolo da luta pelos direitos humanos”, destaca.

Algumas cartas já eram públicas, como a escrita pelo cartunista Henfil, em sua coluna na revista Veja, nos anos 80. Régis destaca também a carta de Dom Evaristo Arns para Frei Tito, em 1983, quando o corpo dele passou por São Paulo, antes de vir para Fortaleza, vindo da França.

Resgate
“A leitura das cartas mostra de que forma foi construída a imagem de um dos maiores mártires da América Latina. Não um mártir convencional, mas um ligado às ideias da Teologia da Libertação”, acrescenta Régis. Para ele, os temas que vêm à tona com o livro, como tortura e desrespeito aos direitos humanos, são extremamente atuais, apesar do momento político vivido pelo País hoje ser distinto do contexto no qual Frei Tito estava inserido. “A tortura, por exemplo, ainda acontece em delegacias Brasil afora, não mais por motivos políticos, como antigamente, mas é um problema que existe”.

Mais informações
Lançamento do livro “Cartas de Com-paixão”, de Régis Lopes. Hoje, a partir das 17h, no Museu de Arte da UFC (Av. da Universidade, 2854, Benfica). Contato: (85) 3366.7481

Iracema SalesRepórter 

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