quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

Quem matou o compositor?

Flávio Paiva

Em um cotidiano marcado por tendências ao entorpecimento da sensibilidade, onde o que é permanente passa a ser dispensável, cai bem dar às crianças que amamos a oportunidade de acesso ao que está além da novidade. A música clássica, por exemplo. Este é o tema do livro/CD "O compositor está morto" (Companhia das Letrinhas, 2012), no qual o escritor estadunidense Lemony Snicket relata, com divertida inventividade, um caso de investigação de assassinato, como recurso curioso para a descoberta do lugar das criações feitas para perdurar.

A edição é cheia de temperos especiais que dão gosto à sua leitura e audição. No leque de ofertas para o envolvimento da criança, o livro/CD de Snicket traz a combinação da literatura com a música, em texto bilíngue, com a parte da narração em português feita pelo cantor paulista Fábio Góes e em inglês pelo próprio autor. Traz ainda a trilha sonora da história, desenvolvida pelo compositor californiano Nathaniel Stookey, com interpretação da Orquestra Sinfônica de São Francisco.

A tradução é do jornalista gaucho Érico Assis, conhecido pelas versões de histórias em quadrinhos da revista Sandman (Panini), do roteirista inglês Neil Gaiman. Merece destaque também as ilustrações da designer canadense Carson Ellis, em leves e bem-humoradas cenas de danças performáticas, de pássaros cantando, notas musicais esvoaçantes e cortejos de batedores em proteção a autoridades. Estão muito engraçadas as caras de perplexidade dos músicos na ilustração em que o Inspetor diz que vai encontrar o culpado entre as cordas, os metais, as madeiras e na percussão.

O livro/CD "O compositor está morto" não cai na armadilha da infantilização de adulto para supostamente agradar a meninada. É um trabalho que respeita o leitor infantil, sem nhe-nhe-nhem. O autor, Lemony Snicket (1970), pseudônimo do escritor Daniel Handler, tem um agradável jeito exagerado de narrar. Seu trabalho mais conhecido é a coleção "Desventuras em Série", editada no Brasil também pela Companhia das Letras, na qual conta a história dos órfãos Violet, Klaus e Sunny Baudelaire no jogo entre a cumplicidade fraterna e a má sorte.

Quando eu fiz a relação de preferências literárias dos meus filhos, na faixa de oito a onze anos ("Livros que falam com a infância", DN, 06/10/2011), o conjunto de livros de "Desventuras em série" apareceu em terceiro lugar. Como o título anuncia, trata-se de uma série de livros de divertidas histórias de infortúnios. Isso mesmo, o autor consegue tratar, com irreverência, de temas fortes como a orfandade e a ambição desmedida. Cada episódio é mais desgraçado que o outro. Por títulos como "Inferno no colégio interno", "A cidade sinistra dos corvos" e "O hospital hostil", dá para imaginar o tamanho dos problemas enfrentados pelos irmãos Baudelaire.

As características do caricatural, do humor negro e das situações desafiantes, encontradas nas "Desventuras em série", estão presentes em "O compositor está morto". Um dos aspectos facilmente visíveis no estilo de Snicket é a explicação com leveza das palavras menos comuns ou das que o autor quer atenção especial. Sobre a palavra "compositor", no âmbito da música clássica, ele diz: "compositor é uma palavra que aqui quer dizer pessoa que fica sentada numa sala falando sozinha e cantarolando e decidindo que notas a orquestra vai tocar".

Sob tensão, investigação, conversas e desconversas, o autor cria, sem didatismos, agradáveis condições para a apresentação de uma orquestra. É o tipo de publicação boa para o ensino da música em casa e nas escolas. O leitor é cativado pela narrativa, ao tempo em que recebe uma aula de musicalização com história de detetive. E Snicket transita bem pelas salas de concerto, visto que gosta de tocar acordeom e é filho de cantora de ópera.

Constatada a morte do compositor da música clássica, cabe ao Inspetor fazer interrogatórios com os principais suspeitos. Quem teria orquestrado esse crime? Os grupos de instrumentos, os músicos, o maestro? O investigador sai inquirindo todo mundo, sempre fazendo anotações em sua caderneta e bradando "Arrá!" a cada pista encontrada. A criatividade de Lemony Snicket extrai das características de cada suposto culpado um motivo para o assassinato, porém, esbarra nos álibis mais engenhosos.

No tempo em que ocorreu a morte do compositor, os violinos aparecem como potenciais acusados, por estarem pressionados demais, mas alegam que estavam executando uma valsa. Os violoncelos e os contrabaixos apressam-se logo para dizer que não faziam nada além do acompanhamento, embora o Inspetor desconfie que, revoltados com as coisas chatas que recebem para tocar, eles podem ser os assassinos. As violas pranteiam que estavam muito ocupadas, reclamando da vida, para cometer qualquer delito, e as flautas asseguram que imitavam passarinhos, o que, por hipótese, elimina qualquer argumento de descontentamento.

O Spalla, que é o melhor violinista da orquestra, se defende, sustentando a tese de que jamais mataria alguém que lhe proporciona tão grande oportunidade de se exibir. Os metais, acusados de "povinho violento", arranja lá suas desculpas. Os trompetes mencionam participações em eventos militares e os trombones revelam que enquanto o compositor era assassinado eles estavam em uma balada com as trompas francesas. As percussões apresentam-se como testemunhas desse encontro baladeiro, talvez como forma de dizer que também não poderiam ser acusadas do crime.

Para cada razão apresentada pelo Inspetor, surge um argumento do coração dos instrumentos. Cada defesa parece mais convincente do que a outra, mas o que vai deixando o investigador preocupado é o fato de que, apesar desse agito todo, o compositor ainda continua morto. No anseio de chegar ao culpado o mais rapidamente possível, volta-se para o maestro, deduzindo que muitos maestros costumam assassinar compositores. E faz uma lista enorme de grandes compositores clássicos para atestar que eles estão mesmo mortos.

A orquestra sai em defesa do batuta e assume que devia ser tolerável alguma vez os maestros e os músicos massacrarem um ou outro compositor. E partem para o contra-argumento: "Mas também os mantemos vivos!". Fazer o quê? Quem quiser apreciar a obra dos compositores clássicos dificilmente escapará de, em alguma circunstância, lidar com um ou outro assassino. Snicket deixa que o leitor perceba que o caso não é de polícia e entrega a cada um de nós as ferramentas de interpretação para desvendar o mistério.

Pessoalmente, fiquei pensando se a melhor forma de ser justo com o compositor não seria participando de alguma orquestra, indo mais a concertos ou simplesmente amando mais a música, tendo um pouco mais de tempo para ela. Todavia, o bom mesmo nesse tipo de literatura é a liberdade que é dada à subjetivação de cada leitor, para que cada um possa sentir o que a sua história de representações permitir. O livro/Cd "O compositor está morto" foge das convenções do efêmero e insinua um lugar especial para a música em nossas vidas.

Ao ler e ouvir este novo trabalho de Lemony Snicket, as meninas e os meninos podem muito bem ficar pelo menos mais curiosos ou com dúvidas se vale a pena conhecer ou desperdiçar, alterar ou deletar a música clássica. Com um pouco de reflexão, provocada por adultos, dá inclusive para imaginar se a criação artística com valor posto à prova do tempo, ainda cabe ou não na ontologia do presente. Depois de ler e ouvir "O compositor está morto", ninguém, nem mesmo o maestro e os músicos, vê e escuta mais uma orquestra com os mesmos olhos e ouvidos. Ah, ia esquecendo de dizer que o Inspetor descobre que o culpado pela morte do compositor vem agindo há muitos anos.

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